[Um Conto de Mago: A Ascensão, escrito por Mauricio Canavarro]
1
Quando chegou no estúdio, Pólo se lembrou da época que frequentou a universidade de cinema. Foi lá que ele deu seus primeiros passos rumo à iluminação. Havia ficado claro para ele ainda naquela época que a maneira como ensinavam como se fazia cinema de verdade era uma completa fraude. Os ângulos, os truques de câmera, a computação gráfica, os efeitos especiais; tudo aquilo era uma mentira. Não era uma completa mentira, é claro, pois cinema poderia ser feito daquela forma, mas certamente não era a melhor forma. Havia certamente uma maneira mais inteligente de produzir vídeos. Os créditos e making offs se encarregariam de enganar o público. Mais do que isso Pólo havia percebido o potencial que aquilo representava não apenas para o seu país, bem como para o estado invisível. A falsificação da informação!
É claro que ele não era o único que tinha imaginado isso. Esse tipo de falsificação era utilizado por vários governos. O tipo mais comum de falsificação era a de uma guerra – ou melhor – de um inimigo. Mas havia uma falsificação muito mais perigosa a qual eles praticavam; a falsificação de um mundo.
Pólo se lembrou de quando era adolescente. Seu pai era um aviador cujo sonho era um dia voar sem avião; um sonho aparentemente tolo e infantil, mas ainda assim um belo sonho. Certa vez o pai sentou para conversar com Pólo e ele explicou porque não queria adotar a mesma medida dos colegas de morar em um condomínio:
– Você pertence ao mundo e não quero que você fique restrito a uma área de um condomínio. Nem mesmo uma cidade, país ou um mundinho. Já existem mentiras demais no mundo que eu conheço e sempre há um mundo maior para se explorar.
É claro que as massas não seguiam essa orientação. Eles preferiam trocar liberdade por segurança e esse é o tipo de negócio que fortalecia homens como Pólo. Em seu estúdio, Pólo filmava inúmeras ameaças como assaltos, homicídios e notícias de países em regimes fechados. Depois despejava tal “esgoto” pela televisão e pela internet. E daí era só uma questão de tempo para se beneficiar do efeito dominó. Quanto mais as pessoas acreditavam em vídeos, maior era o poder dos Watchers/Vigilantes* da Nova Ordem Mundial.
* Tradução da Devir
2
Pólo entrou no apartamento tateando os móveis para se guiar em meio à escuridão. Não havia um único espelho lá. Os eletrodomésticos estavam sempre desligados e a luz sempre apagada. Apesar disso aquilo não era uma residência falsa. Pólo tinha obviamente outros imóveis, mas não eram naqueles lugares em que ele realmente dormia. No fundo a paranoia de Pólo vinha do medo que ele tinha dele mesmo e da União.
Quando adentrou a sala ele tomou um susto. Como tinha se acostumado com a escuridão, logo percebeu um ser humanoide de pé esperando por ele. Eis que Pólo sacou discretamente seu desatomizador de dentro de seu paletó e apontou diretamente para o intruso.
– Você não vai conseguir me ferir com isso aí. – disse o intruso com uma voz feminina e familiar.
– Como você entrou aqui, Luana? – respondeu Pólo.
– Eu sou uma agente bem mais velha do que você, apesar de não aparentar isso.
As biomodificações de Luana a permitiam ver no escuro.
– O que você quer?
– Eu quero saber em primeiro lugar se você acredita no que você faz. – disse Luana.
– O trabalho que eu faço é necessário. Mantém as massas ignorantes sobre a nossa existência ao mesmo tempo em que controla seus impulsos mais primitivos que certamente os levariam à sua destruição. Além disso, nós nos certificamos de sua segurança. De manter nossas crianças, pequenas ou adultas, protegidas. Nem todas as ameaças vêm do que inventamos.
– É mesmo? Acredita nisso? Até hoje todas as ameaças que enfrentei podiam ser falsificações da Tecnocracia.
– Onde quer chegar? – perguntou Pólo.
– Já lhe ocorreu que o mesmo que você faz às massas pode estar sendo feito a você?
– Claro. Muitas vezes.
– E então?
– Então o quê? Não há como termos certeza de nada. Mas pensando no assunto, é verdade que eu não teria chegado até aqui se não fosse pela minha imaginação de sempre vislumbrar algo superior.
– Então por que parou?
– Porque eu me conformei com o tempo. Aceitei um limite e acho que você já fez o mesmo. Tem alguma coisa para me contar?
– Sim, mas não aqui. Primeiro temos que ir para o meu Laboratório**.
** Um Laboratório é um santuário tecnocrata. Santuários são usados por magos para se proteger de vigilância bem como fornecem outros benefícios.
3
Laboratório Progenitor, uma hora depois.
Pólo estava pasmo com a quantidade de tanques de bacta que havia no laboratório.
– Vendo este lugar parece que você está construindo um exército.
– Experimentos apenas, Pólo. Experimentos. – repetiu Luana.
– Então. Por que você me chamou aqui?
– Eu estou criando uma nova bioarma para a União. E não são os nanomecs que já estão em produção. Eu a chamo de SNA, Simbiose Neural Africana.
– Ok, mas o que isso tem haver com o que conversamos no meu apartamento?
– Tudo. Eu não apenas quero que você introduza a ideia no inconsciente coletivo das massas por meio de seus estúdios como também quero que você seja meio aliado em vigiar a contaminação humana.
– Uma simbiose neural? Pelo pouco que entendo de biologia, uma simbiose é o resultado de um organismo que se agrega a outro. Então presumo que uma simbiose neural seja um organismo que se agregue ao cérebro. Correto?
– Exatamente. Esse novo vírus nos dará acesso às mentes deles e assim descobriremos mais.
– Agora entendi porque você me chamou aqui. Isso que você quer fazer vai contra os protocolos. Imagino que você queira que eu documente o vírus como algo que não surgiu de dentro da União, correto?
– Não exatamente. Será o resultado de um paradoxo. Um acidente. Não poderia ser diferente, pois minhas pesquisas também são vigiadas. Você terá a missão de explicar as massas como se proteger do vírus, só que ao fazê-lo você produzirá o efeito contrário.
Pólo pensou: “Isso é perigoso. Muito perigoso. Mas se eu não concordar agora estarei em perigo”.
– Entendo. Imagino que então você já esteja preparada para como nossos superiores lidarão com isso, não é mesmo?
– Sim. Muito preparada. Na verdade eu já vi a sua reação centenas de vezes. Todas com resultados perfeitamente previsíveis.
O tiro do desatomizador atingiu Pólo em cheio pelas costas.
– E em todas você concordou em ajudar depois de ter sido “cancelado”. – disse o clone de Pólo.
Sim! O enorme quilópode Nefandus infiltrado “ajudaria a acabar com o sofrimento da humanidade”.