[Um Conto de Mago: A Ascensão, por Mauricio Canavarro]
OBS: Este conto foi baseado em eventos da Crônica "Tecnocracia no Rio de Janeiro". Saiba mais sobre a protagonista clicando aqui.
Vitória entrou na câmara escura
cuja iluminação se resumia a um neon azul que circundava a parede e o símbolo
da Nova Ordem Mundial que estava no chão. Ali sentado em cima e em uma posição
de lótus estava seu Supervisor, o agente Magnus. Ele, um homem negro na casa
dos setenta com uma barba grisalha vestindo um colante preto abriu os olhos e
sorriu para sua visitante tão logo ela adentrou o lugar. Ela não esperava
encontrá-lo daquele jeito e naquela posição. Ele parecia tão
estranhamente... místico?
Símbolo da N.O.M. |
Este encontro não era exatamente
uma opção. Vitória estava praticamente sendo obrigada pelo Diretor do
Constructo, o Doutrinador, a tratar assuntos particulares com Magnus, devido a
interferência que eles estavam tendo em seu desempenho nas missões para a
Tecnocracia. Ela estava cometendo erros e havia sido mais transparente sobre
isso do que desejava. Agora tinha que pagar o preço.
A porta mecânica atrás dela se fechou selando a câmara.
— Sei que você ainda não conhecia
este lugar, mas, por favor, fique à vontade – disse Magnus em um tom
convidativo.
— O Doutrinador me pediu...
— Não se preocupe. Ele já falou
comigo. Achei que seria melhor conversarmos aqui mesmo – explicou Magnus. –
Temos muito que falar. Você vem adiando isso há muito tempo porque tem medo de
se abrir. Medo do que possam pensar de você ou fazer com você caso não a
compreendam.
Magnus estava certo. Vitória
tinha medo. Mas quem não tinha? Vivendo daquele jeito? Naquela situação? Ele
mesmo havia se oferecido para ajudá-la no que quer que fosse diversas vezes,
mas Vitória sempre se recusava. Ela desconfiava de Magnus, por ele ser uma peça
fundamental que era meio deslocada naquele universo novo de sua vida, afinal
ele era mais questionador, humano e gentil que os outros e isso lhe parecia
fachada, muito embora esse não fosse o único motivo.
Magnus olhou levemente para
baixo:
— Vitória, você não conseguiu
controlar a situação e agora está se sentindo forçada a se consultar comigo,
mas as coisas não precisam ser assim. Deixe-me ajudá-la antes que alguém muito
pior que eu tenha acesso ao seu foro íntimo.
Um pensamento a atravessou. De
fato, era bem possível que se ela não se abrisse com ele, alguém designado pelo
Doutrinador cuidaria de ser seu “psicanalista” e idéia a desagradava muito.
Aquele homem lhe dava arrepios. Por outro lado, talvez Magnus a estivesse
induzindo a esses pensamentos através de seu conhecimento notável da Esfera
Mente. Ela tinha até suspeitas de que ele tivesse habilidades psíquicas. Mesmo
assim, ela decidiu arriscar:
— Eu tenho estado com dores de
cabeça fortes, só isso – disse Vitória meio que desviando o olhar.
Magnus olhou fixamente para a
agente do Sindicato:
— Isso é o que você já tinha me
dito, não é mesmo? Mas não é só isso que andou acontecendo com você. Eu fui
informado de que você tem se aconselhado com um Brâmane sobre pesadelos estranhos
envolvendo a divindade hindu Lakshmi.
— Você o quê? – Vitória fez uma
expressão que misturava raiva e surpresa.
— Eles sabem quase tudo sobre
você, Vitória. Não se esqueça de que foram eles que clonaram seus pais. Eles
conhecem você desde pequena. Sabem perfeitamente de sua religiosidade. O
problema não está na sua fé, mas na maneira como você pretende lidar com ela.
Muitos agentes são pessoas movidas por um senso de dever divino e passam suas
carreiras agindo com racionalidade. Na verdade existe uma crença extremamente
falsa de que a religião e a ciência são adversárias em algum tipo de luta para
decifrar o universo, enquanto de fato a religião contribuiu muito para o
desenvolvimento da ciência ao longo da história. Um bom exemplo disso é
geometria, que tem um valor tanto místico e divino quanto científico para os
Maçons. Mas... assim eu vou me desviar do assunto... o que eu quero dizer é que
você pode se abrir para mim sobre sua relação com sua religião e suas
interpretações de sua vida. Sabe o que eu estava fazendo antes de você chegar? Meditando.
— Você medita? – perguntou
Vitória.
— Como prática mental e física,
sim. Normalmente eu ignoro a busca religiosa, pois não sou tão apegado a essas
coisas. Através da respiração e relaxamento, a meditação me permite preencher o
meu corpo com Energia Primordial tão logo eu me desfaço do estresse. Contudo,
eu acredito que isso é o resultado de anos de treino e prática de controle e
não algum tipo de aproximação espiritual.
Vitória permaneceu imóvel
tentando processar aquilo tudo e se perguntando qual seria o próximo passo.
Magnus fez uma pausa e depois continuou:
— Eu sei que você carrega um
fardo do ponto de vista religioso, desde que você nasceu. Eu posso lhe oferecer
outra interpretação para suas aflições que pode não ser de seu agrado ou sua
escolha, mas que certamente lhe dará uma opção sobre o assunto e só isso pode
ser suficiente para resolver seus problemas psicológicos. Mas eu preciso saber
exatamente o que está havendo contigo. Sente-se aí no chão mesmo, por favor.
Vitória permaneceu hesitante, mas
sentou-se e depois de um breve minuto começou a falar por uma necessidade:
— Esses pesadelos que eu ando
tendo... bem... neles eu me vejo no espelho, mas no espelho eu sou Lakhsmi. Então
ela grita para mim, o espelho se quebra e tudo fica confuso e abstrato. Não sei
explicar.
— Hum, curioso. Talvez você seja
Lakshmi – sorriu Magnus de um jeito irônico.
Vitória se sentiu um pouco
constrangida. Magnus relevou e continuou:
— Você por acaso se sente como se
o que estivesse fazendo não estivesse de acordo com o que o seu interior diz?
– pergunta Magnus em um tom sério.
— É exatamente assim que eu me
sinto – respondeu Vitória.
— Compreendo. Vitória, você deve
entender que é muito comum que com o estresse, as pressões e, sobretudo com o
contato com o fantástico que nós temos, nossa mente venha a desenvolver
fantasias que nos ajudem a fugir de nossas responsabilidades e rotinas. Contudo
através delas, podemos nos conhecer melhor e aprendermos como nos controlar. No
fundo tudo se trata do que você realmente quer subconscientemente. E você já
sabe o que você realmente quer?
Vitória pensou um pouco, agarrou
o braço e fez um olhar discreto:
— Eu acho que não.
— Pois saiba que há um meio de
nós descobrirmos. Podemos acessar o seu subconsciente através de seus sonhos.
— Você está sugerindo o quê?
Entrar na minha mente?
— Entrar precisamente em um sonho
seu. Sim, numa parte da sua mente. É possível, graças a Procedimentos
específicos para isso.
— Não, obrigada Magnus. Eu
prefiro não me expor desse jeito.
— Certo. Você venceu Vitória.
Pode ir agora então. Eu não quero obrigá-la concordar com isso tudo. Você deve
ser livre para seguir seu caminho, mas lembre-se, você deve questionar se é
você quem está controlando sua vida ou se está deixando alguém traçar seu
destino. Quando você se sentir pronta, eu estarei aqui para recebê-la.
Ela ficou intrigada, mas ao mesmo
tempo aliviada de não ter que se submeter a nada sugerido:
— Agradeço a sua compreensão,
Magnus – e se virou se retirando.
O tempo passou.
Vitória sentia uma voz interior
falando com ela. A voz claramente dizia para ela deixar Magnus prosseguir com
seu experimento. Ela sentia instintivamente que era a coisa certa a se fazer,
que isso lhe traria respostas para suas aflições. Mas ao mesmo tempo ela temia
por sua privacidade. Pela exposição que teria. De alguma forma ela estava
“duplipensando” o assunto. As dores de cabeça e os pesadelos pioraram. Ela
precisava tomar uma atitude.
Um dia procurou Magnus em sua
câmara e disse:
— Eu estou pronta para deixar que
você me ajude como guia em meus sonhos.
— Eu imaginei que você mudaria de
idéia. O equipamento está aqui.
Minutos depois, ambos
adormeceriam com eletrodos conectados as respectivas cabeças. Uma cortesia da
Tecnocracia.
...
Vitória estava de pé sobre a mão
de uma estátua imensa de Lakshmi. Ela olhou imediatamente o colosso a vista que
tinha um bronze reluzente. Todo o resto em volta e abaixo dos pés da estátua
eram nuvens alaranjadas, com o crepúsculo no horizonte acontecendo. Magnus
estava bem ao lado dela sobre uma das moedas gigantes das quais a estátua
parecia derramar. Ele estava vestindo um terno preto clássico, com seu chapéu
panamá e olhava para o alto. Vitória ainda estava com seu paletó cinza, mas não
se lembrava de como eles tinham chegado até ali.
— Magnus, onde estamos?!
— Estamos próximos do seu
subconsciente – respondeu ele sem mover a cabeça. – Mas não estamos sozinhos.
Eu sinto mais uma presença aqui.
— Quem? – perguntou Vitória.
Magnus começou a se mover,
fazendo menção de subir a mão da estátua em direção ao braço:
— Eu tenho minhas suspeitas, mas
é melhor nós subirmos logo isso para descobrir. Apenas mantenha o equilíbrio.
Vitória e Magnus começaram a
subir, mas quando chegaram a articulação do braço, uma figura saiu de trás da
sombra do cabelo da estátua. Era Vitória, mas estava vestindo trajes indianos
femininos e tinha quatro braços. Os dois ficaram boquiabertos até que a figura
se aproximasse do ombro da estrutura com uma expressão zangada. Ela falou:
— Ser de pedra tolo! Você achou
que podia desviá-la do dharma. Que
podia fazer dela seu brinquedinho. Mas eu planejei isso tudo. Eu permiti que
você viesse aqui para que pudéssemos acertar as contas.
— Era o que eu temia Vitória. Sua
mente se dividiu em duas. É exatamente isso que a palavra esquizofrenia
significa. Dividir a mente em duas.
— Cale-se desgraçado! Você já a
tirou de mim por tempo suficiente! Agora planeja me aprisionar. Mas você é
realmente muito estúpido se pensa que pode me vencer aqui!
— Por hora eu estou aqui apenas
para conversar – disse Magnus.
— Então DIGA LOGO o que quer –
gritou a figura.
— Vitória é uma pessoa com suas
próprias motivações e anseios. Não é simplesmente um corpo que você pode
controlar para alcançar seus objetivos. Ela deve ser livre para traçar o
próprio destino. Eu quero que você liberte a mente dela. Deixe-a em paz.
Houve um pequeno intervalo.
— Eu vou libertá-la, ser de
pedra. Vou libertá-la... DE VOCÊ! – duas das mãos da figura se juntaram em um
movimento com os braços para cima, enquanto as outras duas apontavam em direção
a Magnus. Uma energia percorreu o corpo dela e uma rajada de luz dourada foi
disparada, atingindo em cheio o Tecnocrata.
Magnus caiu escorregando de volta
para a mão da estátua. Mas ele parecia bem apesar de tudo. Com um movimento
rápido se pôs de pé. Não havia sangue.
— É hora de crescer, Vitória.
Parar de achar que é uma deusa. Você é a agente Divisa do Sindicato, lembre-se
de quem você realmente é – disse Magnus. E com um movimento de seu braço
direito, uma rajada de força cinética atinge Lakshmi, derrubando-a em direção
ao abismo.
Ao ver sua contraparte cair sobre
as nuvens abaixo, Vitória gritou:
— NÃAAOOO!
Magnus permaneceu olhando para
baixo por um tempo, até avistar Lakshmi retornando voando. Ela parou sua
levitação o suficientemente alto para desferir uma nova rajada de energia pura
sobre seu oponente. Mas desta vez Magnus gerou algum tipo de campo de força se
protegendo.
— Eu posso aprisionar sua
contraparte insana, Vitória. Mas eu preciso que você me ajude. Você precisa se
concentrar!
Magnus fez um movimento com suas
mãos. Uma Esfera de energia semi-transparente envolveu Lakshmi diminuindo e a
contendo. No entanto foi desfeita, tão logo Lakshmi estendeu seus membros em
direções simétricas para fora. Um rápido clarão eclodiu. Agora ela lançava um
novo ataque a Magnus com mais energia que antes. Desta vez o Tecnocrata é
atingido em cheio contra o chão. Sangue espirra para todo lado.
O fluxo de poder primordial se
intensificou, rasgando os tecidos corporais de Magnus. Era mais poder do que ele conseguia aguentar. Ele olhou desesperado para Vitória.
— Ela está tentando me matar! Me
ajude, Vitória. ME AJUDE!
No entanto ela permaneceu imóvel
assistindo. Estava em choque e se sentia dividida. Suas memórias começaram a voltar.
Ela se lembrava de uma noite. Uma noite de muitos tiros e muitas mortes. De uma
sombra se aproximando enquanto ela agarrava seu bicho de pelúcia. Dele
colocando suas mãos em volta de sua cabeça, rastreando seu poder.
Era Magnus. Teria ele assassinado
seus pais? Que destino ela teria tido se tivesse permanecido naquela Capela dos
Eutanatos a qual Magnus atacara? Por que ele contou a ela onde a encontrou? “Eles”
realmente estavam desviando-a do dharma
ou isso era apenas uma fantasia sua? Tantas perguntas.
— VITÓRIA... VOCÊ SABE QUE EU
SEMPRE FUI QUESTIONADOR... COM A SUA AJUDA... PODEMOS DESCOBRIR. ME AJUDE! ME
AJUDEEE, POR... FAVOR...
Vitória não conseguia levantar a
mão contra Lakshmi e nem era capaz de entrar na frente.
— PARE! POR FAVOR! Você vai
matá-lo! – pediu ela desesperada.
— Tola! ELE É O INIMIGO –
respondeu Lakshmi.
Magnus agonizava. Ele murmurou
algo incompreensível e poucos segundos depois eles estavam acordando na câmara
escura. Depois vomitou um pouco de sangue. Extremamente abatido olhou para
Vitória com desaprovação.
— Você me decepciona. Eu fiz tudo
por você. Não faz idéia do preço alto que paguei, que ainda pago para mantê-la
a salvo.
— Magnus... você...
— SUMA DAQUI! – gritou ele com
raiva.
— O que você vai dizer para os
outros?
— A verdade. Que não posso
ajudá-la. Que não tenho como ajudá-la. Você guarda muitas dúvidas e
ressentimentos. E ainda por cima desconfia de todos. Em parte, você é como eu.
Mas pode vir a perceber isso tarde demais.
FIM